Artigos

Agricultores franceses rebelados

Gil Reis*

Naturalmente é preciso ‘ficar de olho’ no comportamento daqueles que alimentam o mundo. Por muitos e muitos anos os que nos alimentam a todos se abstiveram de ter voz e de se manifestar, enquanto países, partidos e ideologias se digladiavam sem afetar de forma a prejudicar a atividade de produzir alimentos, que é a missão dos agricultores. Agricultores é classificação mundial dos agricultores e pecuaristas. Com o surgimento da política do ambientalismo prejudicando a missão de proteger a humanidade da fome, os agricultores uniram as suas vozes e se rebelaram.

O site UnHerd publicou em 12 de abril de 2024 a matéria “Os agricultores franceses são os novos Coletes Amarelos”, assinada por Olly Haynes, jornalista freelance que cobre política, cultura e meio ambiente. Reproduzo trechos:

“Quando você pensa na política dos agricultores, o que vem à mente? Talvez a Aliança Rural e o povo da Inglaterra profunda, vestidos com tweed conservador e protestando contra a proibição da caça à raposa. Ou talvez o populismo agrário do BBB holandês e o seu conflito sobre os fertilizantes azotados. Seria igualmente perdoado se pensasse que o carácter da atual onda de protestos dos agricultores europeus era inteiramente de direita. Na Grã-Bretanha, a esquerda manteve-se em grande parte silenciosa enquanto os agricultores galeses em Carmarthen, e depois em todo o país, se revoltaram contra o governo trabalhista descentralizado. Entretanto, coube aos comentadores da direita fazer a observação de que sem os agricultores não haveria alimentos.

Do outro lado do Canal da Mancha, uma narrativa semelhante ocorreu. Como sempre, os agricultores franceses jogaram a um ritmo mais acelerado do que os britânicos, com as cidades colocadas ‘sob cerco’ pelos comboios de tratores dos agricultores. Em cenas que lembram Serotonina de Houellebecq, as coisas tornaram-se violentas, com uma morte e dois feridos graves num bloqueio em Ariège. Os meios de comunicação social em França também enfatizaram o carácter conservador dos protestos, que Jordan Bardella, do Rassemblement National, explorou numa ofensiva de charme que o jornal Liberation apelidou de ‘a política da selfie’. O governo Macron foi igualmente seletivo na sua resposta, reagindo ao anti-ecologismo percebido pelos manifestantes ao suspender o Plano Ecophyto que visava reduzir para metade o uso de pesticidas até 2030 (nenhuma medida foi feita sobre a questão da remuneração justa). Mas o retrato geral pintado foi o de que os agricultores eram homogéneos, todos zangados com as mesmas coisas e da mesma forma, com interesses perfeitamente alinhados.

Na França, a explosão inicial foi espontânea e não coordenada pelos principais sindicatos de agricultores, irrompendo do sudoeste. E dadas as grandes divergências nas suas exigências, seria muito mais correto falar de ‘des agricultores’ em vez de ‘les agricultores’. É verdade que existe uma facção de direita organizada: as pessoas radiantes nas selfies de Bardella, muitas vezes organizadas através do sindicato Coordination Rurale. No centro estão aqueles representados pela FNSEA, o principal sindicato agrícola cujos interesses estão bastante próximos dos do Estado e cujos membros nem sempre são ideológicos, articulando uma mistura de reivindicações baseadas em interesses. Mas à esquerda, largamente ignorada na cobertura, está a Confederação Paysanne: a união dos pequenos agricultores que representa cerca de 20% do total.

O que une os agricultores por trás da Confederação Paysanne são as suas tendências anticorporativistas. Para além das suas preocupações ambientais, apoiam o Plano Ecophyto porque os fertilizantes químicos que pretende eliminar gradualmente permitem a expansão das grandes agroindústrias, ‘que são predadores dos outros tipos de agricultura’, como diz Marandola. Para os pequenos agricultores que compõem a Confederação, a ecologia não é apenas uma ideia virtuosa ou uma preocupação moral. É o local dos interesses conflitantes entre os agricultores camponeses e estas grandes empresas. E em nenhum lugar isto é mais evidente do que na batalha pelas megabacias. Trata-se de grandes reservatórios artificiais que fornecem água ao grande agronegócio para que possam manter o rendimento das colheitas durante a seca, que é um problema crescente em partes de França. Para as explorações servidas pelas megabacias, constituem uma adaptação necessária às alterações climáticas que lhes permite manter o abastecimento alimentar nacional.

E, por enquanto, são os Coletes Amarelos com quem os agricultores franceses mais se parecem. Tal como naquele movimento anterior, os agricultores não são uma força política facilmente identificável, mas um caldeirão ideológico, o produto da destruição criativa em ambos os extremos do espectro político. Ambas as revoltas apanharam igualmente desprevenidas as instituições que normalmente representam estes sectores da sociedade: os sindicatos ficaram chocados com a agressão e o rápido sucesso dos Coletes Amarelos; e o movimento dos agricultores começou sem a contribuição dos sindicatos agrícolas, que depois lutaram para acompanhar. Ambos os movimentos têm mesmo um repertório táctico semelhante, com o seu armamento no trânsito e a utilização de bloqueios de estradas.

O alinhamento não é surpreendente – sempre houve uma presença agrícola significativa entre os Coletes Amarelos, e partes do movimento que permanecem ativas juntaram-se aos agricultores nos seus protestos. E as continuidades significam que a mesma oportunidade política está aqui, à espera de ser explorada. Se os políticos da esquerda ou da direita puderem tornar-se a voz desta síntese confusa de fúria económica e comunitarismo, um exército de agricultores radicais e furiosos poderá estar à sua disposição.”

Como o leitor pode observar, não existe uma ideologia nítida no movimento dos agricultores, cujas atitudes se resumem à produção de alimentos. Fica bem claro que as ideologias e partidos tentam defini-lo como suas plataformas. Claro que alguns agricultores simpatizam e integram ideologias e partidos. Todavia, como grupo, a única ideologia é a proteção da produção de alimentos, o que nos dá a certeza de que os agricultores vão lutar renhidamente para evitar a fome mundial.

“Não é necessário olhar com quem, mas por quem se vota. Sim, eu votei com a esquerda, quando as legítimas reivindicações da classe pobre e o seu sofrimento foram desconhecidos. Sim, votei com a direita, quando se tratou de resistir aos exageros das falsas ideias populares.” Frederic Bastiat, 1801/1850. Em 1846, ele fundou a primeira associação pró-livre iniciativa na França.

*Consultor em Agronegócio

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do AGROemDIA

 

 

 

AGROemDIA

O AGROemDIA é um site especializado no agrojornalismo, produzido por jornalistas com anos de experiência na cobertura do agro. Seu foco é a agropecuária, a agroindústria, a agricultura urbana, a agroecologia, a agricultura orgânica, a assistência técnica e a extensão rural, o cooperativismo, o meio ambiente, a pesquisa e a inovação tecnológica, o comércio exterior e as políticas públicas voltadas ao setor. O AGROemDIA é produzido em Brasília. E-mail: contato@agroemdia.com.br - (61) 99244.6832

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre AGROemDIA

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading