Segunda sem Carne; projeto sem noção
O Poder Legislativo não cansa de surpreender o país. Quando não o faz com escândalos envolvendo malfeitos com dinheiro do contribuinte, com o apadrinhamento de familiares e amigos em cargos públicos e com projetos destinados a conceder benefícios marotos a determinados setores empresariais e do próprio serviço público, ele mostra inclinação ao nonsense com a aprovação de propostas descabidas, sem importância para a maioria da coletividade, mas com potencial para criar polêmica.
O último ato desse espetáculo sem noção foi protagonizado, no final de 2017, pela Assembleia Legislativa de SP, com a aprovação do projeto de lei que institui a Segunda sem Carne no estado. A proposta proíbe o fornecimento de carne às segundas-feiras em “restaurantes, lanchonetes, bares, escolas, refeitórios e estabelecimentos similares que exerçam suas atividades nos órgãos públicos do estado de São Paulo”.
De acordo com o projeto, aprovado em sessão extraordinária, esses locais devem deixar visível um cardápio alternativo. Quem descumpri-lo estará sujeito a multa, que poderá dobrar em caso de reincidência. A exceção são hospitais públicos e unidades de saúde pública.
A proposta é do deputado estadual Feliciano Filho (PSC), defensor dos direitos dos animais. O objetivo do projeto, argumenta, é chamar atenção para os efeitos do consumo de carne sobre o meio ambiente e a biodiversidade, além de sua relação com a ocorrência de doenças.
“Uma alimentação sem ingredientes de origem animal é ética, saudável e sustentável. Assim como nós, os demais animais querem ser livres e ter uma vida normal junto a membros da sua espécie”, diz o parlamentar, em sua justificativa.
A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) e a Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat) se manifestaram contra o projeto, considerado inconstitucional.
As quatro entidades apresentam outros argumentos para rechaçar a proposta:
*A medida pode acarretar em uma perda anual de até R$ 29 bilhões na cadeia produtiva da pecuária de corte do país;
*A aprovação da proposta poderia provocar o fechamento de até 250 mil postos de trabalho, com o “desaparecimento” de R$ 5 bilhões em salários;
*A cadeia de proteína animal gera 4,1 milhões de empregos diretos e indiretos;
*A produção de proteína animal é fundamental para a garantia de segurança alimentar da população brasileira e mundial, com a oferta de alimentos de alta qualidade e de baixo custo, acessíveis às diversas classes sociais;
*A carne bovina é um dos principais alimentos da dieta do ser humano, com benefícios cientificamente comprovados na prevenção e combate à anemia e no desenvolvimento intelectual da espécie.;
*O projeto é uma intervenção ilegítima e indevida nas relações de consumo.
Que Feliciano Filho tenha apresentado proposta com esse teor, não é de se estranhar. Com frequência, parlamentares propõem projetos esdrúxulos país afora. O que impressiona é a aprovação do texto pela Assembleia Legislativa paulista.
Acrescente-se a isso, a revelação feita pelo secretário de Agricultura de SP, Arnaldo Jardim, em áudio enviado a representantes do setor rural pelo WhatsApp: como tinha dificuldade para aprovar o Orçamento de 2018, a bancada governista obteve o apoio de Feliciano em troca da aprovação do projeto Segunda sem Carne.
Jardim diz que o governo não apoiou o projeto e que trabalha para vetá-lo. A assessoria do governador Geraldo Alckmin já informou que a proposta será vetada. Ainda bem. Afinal, a defesa dos animais não passa pelo cerceamento da liberdade de escolha do consumidor nem pelo ataque ao consumo de proteína animal.
Propostas como a da Segunda sem Carne servem mais para aumentar o desgaste do Parlamento junto à opinião pública do que para trazer qualquer benefício prático à população, sem falar de outros interesses que possam estar embutidos no projeto.
Além de ignorar os esforços do Brasil para expandir a pecuária sustentável e as ações de bem-estar animal, o projeto pode, isto sim, elevar o preço das refeições em estabelecimentos instalados em órgãos públicos do governo de SP, reduzindo ainda mais o poder de compra dos servidores num momento de crise.
É necessário, sim, que tenhamos políticas de proteção aos animais e um engajamento cada vez maior de pessoas dispostas a trabalhar seriamente por essa causa, com menos fotos nas redes sociais e mais ações efetivas.
Jogar para a plateia com temas relevantes não é uma boa estratégia, principalmente quando é usada para turbinar a busca de votos. A defesa dos animais é coisa séria. O deputado Feliciano Filho sabe bem disso. Tanto que já foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público de SP por maus-tratos a animais.